Exposição A Terceira The Third, Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo
Argolas Tropicais | Tropical Hoops, 2018
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
110 x 84 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Sinuca | Snooker, 2018
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
86 x 74 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Ups and Downs, 2019
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
77 x 70 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Os Filetes | The Strips, 2018
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
92 x 83 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Pôr do Sol | Sunset, 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
77 x 66 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
A Floresta (para M.) | The Forest (to M.), 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
77 x 62 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
Línguas verde, pink e bordô | Green, pink and burgundy tongues, 2019
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
76 x 64 cm
Coleção | Collection MGSS, São Paulo
O Ovo | The Egg, 2020
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
68 x 61 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
Tava Cheio, Vazou | It was full, it spilled, 2019
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
83 x 72 cm
Coleção | Collection Silvana Hofig Ramos, São Paulo
Octopus, 2020
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
94 x 56 cm
Coleção | Collection Felipe Cavalieri, São Paulo
Hurricane, 2019
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
140 x 140 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
Altos e Baixos after Louise | Highs and Lows after Louise, 2020
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
140 x 420 cm
Coleção | Collection Zuppardo, São Paulo
Onda Solta (Unbounded Wave), 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
150 x 185 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
O Êxtase | Ecstasy, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
153 x 180 cm
Coleção | Collection Rodrigo Mussolino, São Paulo
Episódio 1 | Episode 1, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
150 x 300 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Episódio 2 | Episode 2, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
150 x 280 cm
Coleção Particular | Private Collection, São Paulo
Episódio 3 | Episode 3, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
150 x 300 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
Colagem com Anéis | Collage with Rings, 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
42 x 36 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
O Mormaço e o Azul | Blue Sultry Weather, 2020
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
155 x 204 cm
Coleção | Collection Giuliana Ranieri, São Paulo
Chifre de Veado | Staghorn Fern, 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
80 x 88 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
O Carrossel | The Carrousel, 2020
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
70 x 66 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
Chuva Choro | Rain Tears, 2021
Grafite e lápis de cor sobre papel
Graphite and colored pencil on paper
140 x 430 cm
Coleção Particular | Private Collection, Londrina
Disco Azul e Rosa | Blue and Pink Disk, 2021
Colagem de papéis desenhados com grafite e lápis de cor
Graphite and colored pencil collage drawing
52 x 42 cm
Cortesia | Courtesy Galeria Leme, São Paulo
A vertigem de escrever um corpo no abismo do mundo
por Bianca Coutinho Dias, psicanalista e crítica de arte
“A Terceira”, exposição de Marcia de Moraes no Centro Cultural Banco do Brasil, conjuga questões da arte e da psicanálise trazendo para o centro de sua obra o corpo pulsional: dentes, seios, folhas, colunas vertebrais, troncos de árvores – vibrações e aspectos disruptivos saltam do seu lugar de origem e se deslocam para as obras expostas. Através do desenho, a artista encontra destino ao que transborda: para o vazio e para o excesso, para o que é radicalmente seu e para aquilo que é pura alteridade.
Na conferência que também recebeu o nome “A Terceira”, Jacques Lacan trata de um ponto central para a psicanálise: a maneira singular como cada sujeito escreve um corpo.
“Quem sabe o que se passa no seu corpo?”, interroga o psicanalista, que diz ainda: “A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo”. Com Lacan retomamos a novidade freudiana acerca da corporeidade. Na psicanálise, o corpo não se reduz ao campo da biologia, mas se faz a partir da linguagem.
Marcia de Moraes revela que há maneiras de se desdobrar o corpo, de ficcionalizar o que nele incide. Avançando pela produção da artista vemos que um léxico é inventado, e o desenho, que começa sem projeto prévio, encontra caminho na surpresa e no espanto. As perguntas que seus desenhos e colagens sustentam encontram-se nas entranhas e nas vísceras, no dentro e no fora, na superfície e na espessura das coisas. Até onde o corpo suporta? Como se escreve um corpo? De que matéria somos constituídos?
O gesto da artista se delineia na vitalidade explosiva do traço, que abriga também espaços vazios e o intervalo entre a nascente da imagem e sua inscrição. Diferentes pedaços do real vêm causar desejos e produzir efeitos, como uma condição que a leva a buscar um dispositivo topológico e discursivo que é uma espécie de profanação, como uma linguagem que se emancipa de seus fins figurativos e se prepara para um novo uso, para uma nova experiência do olhar.
No livro “O que vemos, o que nos olha”, Georges Didi-Huberman nos convida a inquietar a visão diante da obra de arte e experimentar o que não vemos. Na obra de arte pode haver algo que atinja nosso olhar, que chame à perda de nossas certezas sobre o objeto e nos lance ao espaço em que possa vicejar a invenção.
No traçado das primeiras formas, Marcia de Moraes abriga o espaço em branco. O intervalo revelado pelo traço do grafite e a cor como preenchimento desfiguram o figurativo, fazendo com que as coisas possam se imiscuir e perder seu contorno fixo. Dos desenhos às colagens há um movimento de sístole e diástole. Se nos desenhos seus acenos são de grande amplitude e expansão, nas colagens há outro tipo de gesto, um outro tempo.
Numa dimensão de hibridismo e de inclassificável, seu trabalho não se deixa capturar com facilidade. O modo de preencher os espaços com cores se aproxima do pictórico. Usando sua matéria pulsátil – o lápis de cor – a artista encontra, na mistura sensível, algo de uma estética e uma ética, como no desenho “O mormaço e o azul”: uma abertura em um espaço tramado entre a cor e o fenômeno da natureza que se experimentam dialeticamente. Ou ainda em “Onda solta”, que busca na canção de Chico Buarque a evocação de um movimento encontrado no sinuoso de uma aparição.
As referências partem de lugares diversos: o ambiente natural, uma música, um poema ou mesmo a obra de outra artista, como em “Altos e baixos after Louise”, uma homenagem à Louise Bourgeois. Seu trabalho cria dobras, desdobra-se, duplica e mistura discursos numa construção labiríntica que concede voz ao inanimado. Uma irradiação incessante acontece nas colagens feitas de recortes de desenhos, conjugando espanto a uma ironia fina, que comparece já nos títulos de obras como “Octopus”, “Tava cheio, vazou”, “Ups and downs”, “Argolas Tropicais”, “Sinuca”. Os próprios nomes dados sabem perverter a linguagem, jogam com as ambiguidades e as circularidades da vida: em alguns dos trabalhos, os “Anéis”, o “Carrossel” ou mesmo os “Filetes” que comparecem dos títulos à forma, injetam tremores na nomeação, sustentando algo de delirante que pode encontrar o indizível, o inominável, o real, o ponto em que toda significação escoa.
Em suas profanações, Marcia de Moraes ousa desinvestir as camadas de sentido até o osso, escrevendo uma geografia corporal própria que enoda natureza e cultura, botânica e poesia, onde ranhuras desenham horizontes improváveis.
Um furacão ou a chuva podem criar derivações convulsivas do afeto como em “Chuva choro”, obra em que forma, cor e conteúdo conversam e criam camadas de acontecimento e espelhamento entre a vertigem do sensível e a vibração líquida da natureza. Elementos se repetem criando uma cartografia própria: um conjunto aberto sem lugares definitivos, uma resposta ao real que abriga o estranhamento necessário para se produzir algo, onde o irrepresentável e o impensável podem aparecer.
“Êxtase” – trabalho em que o que conecta é também o que separa – traz imagens que dizem do nascimento das coisas, e reverberam uma experiência vertiginosa e a sensação de certo embaraço interpretativo. São formas com enorme carga de sentido mas sempre, em alguma medida, inacessíveis ou inassimiláveis. Trata-se do feminino em convulsão, como no “Êxtase de Santa Teresa”, escultura de Bernini que reverbera um corpo pulsional marcado pela linguagem. E como em Loie Fuller – atriz e dançarina que desenha movimentos envolvida em gestos e tecidos – algo de dança serpenteia a agudeza do trabalho de Marcia de Moraes, feito de dobras e curvas decompostas, a partir de uma compreensão que articula o invisível ao visível.
Em suas obras, que agora se apresentam de maneira intimista – expostas, mas guardadas em cofre-forte, – podemos entrever a relação viva da cadência própria do feminino, como num poema de Hilda Hilst:
Por que não posso pontilhar de inocência e poesia
ossos, sangue, carne, o agora
e tudo isso em nós que se fará disforme?
E, daí, tocar um corpo em sua arquitetura, em sua paisagem: trechos de vida escritos no abismo do mundo.
The vertigo of writing one’s body into the abyss of the world
by Bianca Coutinho Dias, psychoanalyst and art critic
“A Terceira” [The Third] explores issues related to the fields of art and psychoanalysis, centering around the instinctual body, or the body of drives: teeth, breasts, leaves, spines, tree trunks and so on – vibrations and disruptive features leap from their original environments, only to re-emerge visually in the artist’s works. Through her drawings, the artist is able to embrace and give shape to the overflow of body and mind: emptiness and excess, that which is radically hers and that which is pure alterity.
In one of his lectures, also called “The Third” [La troisième], Jacques Lacan addresses a point that lies at the very heart of psychoanalysis, namely the singular manner by which a given individual writes or represents his or her body.
“Who knows what goes on in one’s body?”, Lacan inquires, and adds: “Anxiety is precisely something which is located elsewhere in our body, a feeling that arises as a result of this suspicion that comes to us, the suspicion of being reduced to our body”. With Lacan, we return to Freud’s novel concepts of corporality. In psychoanalysis, the body is not relegated to the sphere of biology. Rather, it is shaped by language itself.
Marcia de Moraes shows us that there are indeed ways in which the body can be unraveled and explored, processes which allow us to fictionalize all that occurs within and without it. In contemplating the artist’s work, a personal and made-up lexicon gradually takes shape before us; her drawings, begun with no conscious plan, seem to thrive in the soil of unexpectedness and uncanniness. The questions implicit in her drawings and collages permeate the viscera, the interior and the exterior, the surface and the breadth of things: What are the limits of the body? How does one write or represent one’s body? What are we ultimately made of?
The artist’s gestures are revealed in the explosive and vital quality of her strokes, strokes which embrace empty spaces – betraying the interval between the image’s conception and its actualization. Different fragments of reality come together to arouse desires and to produce myriad effects – she has sought a topological, discursive and visual device which, in a sense, constitutes a profanation; she has also sought a language that can emancipate itself from its figurative ends and be used in novel ways, ultimately engendering a new and refreshing experience of the gaze.
In “Ce que nous voyons, ce qui nous regarde” (“What We See Looks Back at Us”), Georges Didi-Huberman invites us to alter or dislocate our gaze when contemplating a work of art in order that we may experience that which is not visible. In a work of art, we might perceive something that draws our gaze, something that causes the depletion of everything we hold true about the object, something that may allow us to access a space wherein invention and creation thrive.
The lines and strokes that comprise the basic shapes assimilate empty space. The intervals which are revealed by the pencil strokes and the colored shadings lead to the disfiguration of the figurative, causing the shapes to merge and overlap and, ultimately, to lose their contours entirely. The difference between her drawings and her collages may be likened to the diastolic and systolic phases undergone by the heart. Whereas her drawings convey a sense of amplitude and expansion, her collages convey altogether different and more constricted gestures and times.
Her work can’t be easily pinned down: it occupies a hybrid and unclassifiable dimension. The colors that fill the empty spaces lend her pieces a rather pictorial quality. Her use of living or pulsating materials (colored pencils) allows the artist – by creating a welter of sensuousness – to establish the rudiments of an aesthetics and an ethics, observed in drawings like “Blue Sultry Weather” [O mormaço e o azul]: an opening in the spaces created by the dialectical interaction between colors and natural phenomena. Whereas in other pieces, such as “Unbounded Wave” [Onda solta], which borrows its title from a passage in play written by Chico Buarque, the artist attempts to evoke the sinuous movements of certain ghostly apparitions.
Marcia de Moraes draws on a diversity of references: the natural environment, a song, a poem, or works by other artists, e.g. in “Highs and Lows after Louise” [Altos e baixos after Louise], a tribute to Louise Bourgeois. Her works fold and unfold upon themselves, they duplicate themselves and they combine distinct discourses into a labyrinthine construct which gives a voice to that which is inanimate. A continuous irradiation pervades her collages, composed of drawing cutouts, combining uncanniness and refined irony, which are also present in the titles of works such as “Octopus”, “It was full, it spilled” [Tava cheio, vazou], “Up and downs”, “Tropical Hoops” [Argolas Tropicais], “Snooker” [Sinuca]. The names themselves serve to undermine language, they play around with the ambiguities and circularities of life: in some of her works, the “Hoops”, the “Carrousels”, the “Strips”, which are alluded to in the titles and are represented in the pieces themselves, impart a sense of uncertainty to the very act of naming, revealing a somewhat delirious process by which she seeks to capture the unsayable, the unnamable, the real, the single and final point into which all meaning flows or drains.
With her profanations, Marcia de Moraes boldly exhausts every layer of meaning down to the very bones of things, creating a corporeal geography of her own – merging nature and culture, botany and poetry –
a corporeal geography whose furrows and grooves sketch out improbable horizons.
A hurricane or a storm can lead to convulsive derivations of affection, such as in “Rain-tears” [Chuva choro], a piece in which form, color and content interact seamlessly, creating layers of actions and reflections between the vertigo of the sensible and the liquid resonance of nature. Certain elements recur throughout the pieces, giving rise to a personal cartography of sorts: an open-ended map with no definite locations, an answer to a reality which contains the uncanniness required for the creation of something, anything, and in which the irrepresentable and the unthinkable might somehow manifest themselves visually.
“Ecstasy” [Êxtase]– a work whose elements are at once connective and separative – is composed of images that adumbrate the birth of things: they reflect a vertiginous experience; they give us a sense of interpretative bafflement. These shapes, however, are steeped in meaning, and yet they remain, to some extent, inaccessible or unassimilable. Based on the “Ecstasy of Saint Teresa” by Bernini, which depicts the impulse-driven body inscribed by language, the work attempts to communicate the convulsions of femininity. Furthermore, Moraes’s inherently penetrative works are also pervaded by a certain edgy, serpentine and dance-like flow – reminiscent of the works of Loie Fuller (an actress and dancer who visually renders movements and gestures by using long, flowing silk costumes) – with its decomposed curves and its foldings and unfoldings, thus forging a direct connection between image and thought and drawing on a particular understanding of things which allows her to articulate the visible with the invisible.
The works featured in this intimate exhibition – displayed in what used to be a bank vault – allows us, in a sense, to experience the living cadence so characteristic of femininity, much like a Hilda Hilst poem:
Why can’t I sprinkle a little innocence and poetry
on bones, blood, flesh, now
and all that lies within us which will one day
become ugly and deformed
To touch a body – its architecture, its landscapes: excerpts from a life written in the abyss.