Cheio de Vazio
Cheio de vazio, como a expressão lusitana “cheio de fome”, é um falso paradoxo. Na verdade, é uma figura de linguagem que sugere que se está tomado por ausências. Imagens cheias de vazio não precisam estar em branco, podem, simplesmente, aparecer permeadas por brechas, intervalos e lacunas significantes. Nas obras de Elaine Arruda e Marcia de Moraes estamos falando de imagens que só se tornam completas quando constroem e conquistam os vazios em sua densa tessitura.
Elaine Arruda faz gravuras em metal, mas em tal escala que se transformam os processos de sua fatura. No lugar da fina e delicada ponta seca utilizada sobre as chapas metálicas, a artista emprega martelos, marretas, formões, serras, solda e outros instrumentos emprestados de uma metalúrgica no cais do porto de Belém do Pará, onde normalmente se fazem escadas e portões. As chapas de metal são grandes e, emparelhadas, criam uma paisagem de mais de treze metros de extensão. Essas extensas superfícies irregulares são entintadas e soldadas a uma máquina de calandragem que faz as vezes de prensa para a gravação.
Ao invés de comportar-se como fino estilete, as ferramentas de Elaine provocam relevos e depressões, abrem cortes serrilhados, criam hematomas que depois são replicados na superfície do papel, que não recebe apenas cargas de tinta mais e menos espessas, mas também é amassado, rasgado e perfurado. As imagens resultantes apresentam-se como um campo abstrato saturado, com áreas completamente negras e eventuais vazios, além dos rasgos, de onde emerge alguma luminosidade. Assim como na ocupação do território de Belém, todo vazio que se encontra é resultado de tensão e atrito: na cidade, a floresta e o rio pressionam o espaço ocupado pelos prédios; na gravura, a escura profundidade gravada parece tentar remendar a extensão do papel.
Nos desenhos de Marcia de Moraes, por sua vez, são os espaços em branco que escorrem como se pudessem sobrepor-se aos espaços preenchidos pelas intensas cores dos lápis coloridos. Mas há aí uma série de surpresas ao olhar. Apesar de parecerem resultados espontâneos de gestos ágeis e orgânicos, seus desenhos nascem de semanas de preenchimento minucioso de formas sinuosas sobre o papel, horas a fio de trabalho repetitivo para cobrir cada parte de sua extensão. Por entre as manchas coloridas, insinuam-se sobras de espessura irregular, como se líquidas e aleatórias, mesmo que sua fatura seja premeditada no primeiro estágio do desenho.
A artista dedica mais energia e tempo a cada trabalho do que uma primeira visada pode sugerir, o que contribui para acrescentar resistência à estrutura original dos desenhos. As escolhas sucessivas de cores, texturas e matizes são ponderadas e revistas de forma cuidadosa (obsessiva até) e fazem com que o resultado ofereça-se a múltiplas percepções de profundidade e movimento. Expansão e retração, escoamento e ascensão, curva espiral e gravidade – são alguns dos sentidos visuais que convivem e confundem-se enquanto se observa esses desenhos.
Assim, para Elaine e Marcia, é o vazio que importa. Quer dizer, é o vazio que libera as obras de serem apenas ritmos, densidades e cores compostas de forma harmônica. É o vazio, ainda, que é a principal matéria a ser controlada e canalizada como vetor que tensiona toda a superfície das imagens. Por fim, é o vazio que exprime a ousadia dessas artistas que lidam de forma ambiciosa com a escala de suas obras e gestos.
Paulo Miyada e Julia Lima
(Núcleo de Pesquisa e Curadoria)
Press Release | English Version
Organized by Instituto Tomie Ohtake’s Center for Research and Curatorship, especially Paulo Miyada and Julia Lima, Plenty of Emptiness is an exhibition that brings together works by two artists who treat engravings in a particular manner, and in large dimensions.
Born in the state of Pará, north of Brazil, Elaine Arruda uses hammers, chisels, welds and other instruments normally used in the production of stairs and gates to work on large metal sheets, at the metal works plant itself. Subsequently, the then irregular sheet is carried to another metal work plant, also located at the Quayside of the capital city of Belém do Pará, in which it is welded to a calendering machine to be used as a print for a large-format engraving, having about one by two meters in size. According to the curators, this operation involves, above all, saturating all implicit possibilities in the depth of the dry point tearing on the metal matrix. “Instead of acting as a thin stiletto, Elaine’s ‘dry point’ triggers raised surfaces, opens cuts with serrated edges, creates bruises which are later replicated on the surface of the printed paper, which not only gets larger or smaller loads of paint, but is also marked by reliefs, dips and breaks in its fabric and composition”, they point out.
Miyada and Lima compare Elaine’s engraving to the city of Belém, which is embedded in a peculiar way across a wide river and a dense, moist and warm forest, where each and every empty space needs to be conquered by man. “The inking and printing process and the large areas worked at the casts make the resulting images a very dense field, including even more dense areas and only occasional empty spaces – tears – where light somehow emerges from this pictorial field. “Thus, an intense and bodily gesture makes of the engraved surface an image that puts forward a vast space in its scale, rather rugged in its visual and material depth.”
The works of Marcia de Moraes, in their turn, are constituted by intense and detailed construction of chromatic fields. By using only crayons on large format paper, the artist creates areas of vibrant color, which follow curves so sinuous that appear to result from the outflow of paints and liquids. Yet the curators highlight that there is nothing liquid in her output, as hours and hours of work are required to fill each small area of the drawing. “Thus, the pure play with abstract forms that characterizes the transformation of Brazilian art in the 1950s and 1960s is reenacted by the artist in a more laborious fashion”, they add. According to them, this discrepancy opens up space for the works to address not only formal aspects of art, but also to deal with the expectations and psychological projections of the author herself – which places her in relation to Brazilian artists such as Maria Martins and Flávio de Carvalho.
Elaine Arruda (Belém do Pará, 1985) is a graduate student in visual poetics at ECA/USP (University of São Paulo). She was awarded the Funarte Scholarship to Encourage Production of Visual Arts in 2013 and the Artistic Research and Experimentation Scholarship from the Art Institute of Pará – IAP, at its 2010 and 2013 editions. Coordinated the Grafias project, approved by Edital Espaço Cultural Banco da Amazônia 2010. Art Residency held in Quebec, Canada (2009). Participated in solo and group exhibitions in Belém, São Paulo and France. Has works documented in the following publications: Polichinello Magazine, Belém, 2013; Quivive, Montréal, 2012; and the Journal of Reviews of Folha de São Paulo newspaper, 2010.
Marcia de Moraes (São Carlos, 1981) holds a Bachelor’s and Master’s of Arts from Unicamp – State University of Campinas. In 2009, she had her first solo exhibition at Maria Antonia University Center – USP, São Paulo. In 2010 she held a solo exhibition at Galeria Leme, São Paulo, holding Art Residency in the same year at La Cour Dieu, in the city of La Roche-en-Brenil, France. In 2011 another residency was held this time at Carpe Diem Art and Research, Lisbon, followed by a solo exhibition at that institution. She held an exhibition in Paris also in 2011 (“Correspondance Bresilienne: Saint Clair Cemin & Marcia de Moraes”), organized by VL Contemporary), and at FUNARTE, São Paulo (“One of Three: Carla Chaim, Julia Kater, Marcia de Moraes”) as a result of FUNARTE Contemporary Art Award in 2011. In 2012, she held two solo exhibitions: at the Art Museum of Goiânia – MAG and at Galeria Leme, São Paulo. In 2013 she held an art residency and a solo exhibition at Fundación Ace, Buenos Aires, supported by the Ministry of Culture of Brazil and the Brazilian Embassy in Buenos Aires. The artist also participates in group exhibitions in Brazil and abroad, among which the following are worth mentioning: “5 Parallel, The Contemplation of the World”, Liceu de Artes e Ofícios (School of Arts and Crafts), São Paulo, 2010; “Atelier Fidalga, Boîte Invaliden” Galerie Invaliden 1, Berlin, 2011, and 7 Exhibition Program, Art Museum of Ribeirão Preto – MARP, 2009.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
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Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.
Vista geral da exposição (exhibition view) Cheio de Vazio (Full of Empty), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, 2014. Foto (Photo) Ding Musa.